“Ao contrário do que
parecem pensar os seus corifeus, a tecnocracia nunca é asséptica”. A
afirmação é de João Bosco Mota Amaral, na crónica “Ideologia e realidade” publicada neste jornal a 5 do mês passado. Um texto que, a bem tanto
da cultura política quanto da cultura tecnológica nestas ilhas, não deve passar
despercebido. As linhas que se seguem tentam ser um pequeno contributo para isto.
“Tecnocracia”
e alienação… ou má-fé política
Literalmente, “tecnocracia”
significa a entrega da autoridade ou do poder político não a agentes
ideologicamente condicionados, mas sim a técnicos das questões em causa. Os
quais se distinguiriam dos “políticos”, de um lado, por conhecerem a melhor
forma disponível de as resolver, do outro lado, por serem ideologicamente
neutros.
Uma denúncia minimalista dessa
pretensão será revelar que as questões políticas não se reduzem a questões técnicas,
mas não discutindo se, nestas outras, se verifica alguma forma resolutiva indiscutivelmente melhor do que quaisquer outras. Uma denúncia radical será revelar
que é logo no âmbito técnico que a pretensão tecnocrática é própria apenas de
quem não percebe a técnica (mesmo que a execute diariamente!). O ex-presidente
da Assembleia da República e do Governo Regional dos Açores, na crónica
referida, fica-se pela primeira denúncia. Eu reforçá-la-ei, avançando para a
segunda.
Começando por aquela denúncia
minimalista da tecnocracia, talvez este exemplo seja significativo: suponha-se
um grande terramoto numa cidade grande. Provavelmente todos estarão de acordo
que, nas primeiras horas, haverá apenas que aplicar a frase do Marquês:
enterrar os mortos e cuidar dos feridos. À medida que isto vai sendo cumprido,
porém, cabe decidir o que fazer às fachadas em risco de derrocada e ao entulho,
etc.
Decidindo entre, de um lado, deitá-las
ao chão e abrir espaço para uma cidade nova, reconstruída segundo um
planeamento central – se nivelando a habitação e relevando os edifícios
públicos, então classificaremos essa autarquia como “socialista”.
De outro lado, aplicar o grosso dos
recursos na tentativa de preservar os arruamentos e fachadas tradicionais da
cidade – opção dita “conservadora”.
De outro lado ainda, salvo o
planeamento dos serviços públicos (traçado de ruas, saneamento básico…), o
apoio à habitação que responda às necessidades humanas elementares, e a atenção
a alguns edifícios eventualmente simbólicos, deixar a reconstrução resultar das
diversas iniciativas dos agentes privados – numa autarquia “liberal”.
Ora essa decisão política não se
encontra estabelecida em qualquer manual de engenharia civil, de arquitetura ou
ordenamento do território. Ela apenas
pode resultar da hierarquia dos valores políticos. Destacando, respetivamente, ou a
igualdade dos cidadãos e o relevo público, a promover pelo Estado; ou a
conservação do que tiver funcionado antes e assim a estabilidade coletiva,
igualmente a impor pelo Estado; ou a liberdade individual no respeito pela
funcionalidade coletiva, com um poder político forte na garantia desse respeito
mas minimalista no resto.
Qualquer presidente de câmara, digamos que engenheiro de formação, que tente justificar a sua decisão invocando
antes aqueles manuais, na melhor das hipóteses não percebe o que faz enquanto
político, nem o que fazia como engenheiro. Na pior das hipóteses, pretende
iludir os munícipes sobre uma inexistência de alternativas para melhor lhes
impor a sua (dele) opção ideológica.
A alienação técnica dos
tecnocráticos
Suponhamos agora que esse
presidente é pessoa de bem, e acredita estar retificando a política ao importar
para esta uns procedimentos indiscutíveis que julga ter recebido na faculdade. Cujos
professores, nesse caso, se terão enganado ao passar-lhe o diploma, pois o
homem (a) pouco perceberá do que aprendeu de engenharia, (b) aplicará mal estes conhecimentos em casos não paradigmáticos, e (c) muitas vezes nem será capaz de esboçar essa aplicação.
a)
A
infradeterminação empírica dos enunciados científicos e técnicos – Sobre a certeza dos
conhecimentos técnicos e científicos, tomemos uma alegoria conhecida: imagine o
leitor meia dúzia de pontos separados numa folha, dispostos de modo que a linha
mais curta entre eles forme, digamos, uma semirreta. Além dessa linha, porém,
existe um número indeterminado de linhas de união (ex. fazendo um certo desvio
entre o 1º e o 2º pontos para lhes relacionar também um outro ponto, ou poderia
ser um desvio diferente… e o mesmo entre o 2º e o 3º, ou ligar este diretamente
ao 1º…).
in: Analytic Politics, 18/01/2010 |
Agora façamos corresponder um
ponto, digamos, à imagem de espumar pela boca, outro, a revirar os olhos,
outro, a convulsões do tronco e membros… Uma “linha” explicativa que os une
corresponderá à teoria da “epilepsia”. Mas outra linha já foi (é?) a “possessão
por um espírito maligno”. E mais quantas teorias poderão assumir e interligar
tais observações?
Nenhuma teoria científica ou
enunciado tecnológico, em princípio, se encontra absolutamente determinado por
observações. Qualquer deles apenas é possível na base de pressupostos teóricos.
Portanto, é no seio das próprias tecnociências que ou não existem teses únicas ou, se em certos períodos as há, será apenas por falta de imaginação dos
agentes então em jogo.
b)
O problema da
aplicação das regras – Sobre a aplicação de regras ou instruções técnicas,
tomemos um exemplo do célebre filósofo anglo-austríaco Ludwig Wittgenstein: suponha
o leitor que escreve a série 0, 2, 4, 6… 98, 100. E que diz a um observador,
“Continua, somando 2”. Ao que este outro escreve 104, 108, 112… Não se exalte o
leitor com ele, pois, de facto, a regra que lhe deu pode significar tanto que ele
deveria somar 2 a cada número antes obtido, como que ele deveria somar 2 aos 2
que lhes somava na série até 100. Ou seja, é preciso uma regra B que explicite
como se aplica a regra A a um novo universo. Mas porventura também uma regra C
que oriente a aplicação da B, e uma regra D…
Assim, ainda que dois técnicos
assumam uma mesma instrução geral, podem discutir a sua interpretação em ordem
à aplicação a cada caso concreto.
c)
A tomada de
decisão técnica e os valores – Enfim, suponhamos que concordam na
interpretação da regra relevante para o caso. A qual deverá ser uma instância
do esquema geral da ação técnica formulado por Mario Bunge (em A Investigação Científica): se se pretende obter y no momento t com a probabilidade p, então
há que fazer x no momento t.
Como porém a forma condicional do
esquema logo revela, cabe começar por ponderar o valor de y, o custo (valor negativo) de fazer x em t, e o valor do que
se poderia antes fazer com esse capital se não se fizer x. Só conforme o resultado dessa ponderação se poderá decidir por qualquer
ação técnica.
Ou seja, para se esboçar esta
última cabe começar por fazer precisamente o movimento inverso ao reclamado
pelos tecnocráticos: não é a técnica que invade o campo político limpando-o de
quaisquer valores; são antes estes que se constituem como recursos sine qua non de qualquer ação técnica.
Na pista de João Bosco Mota
Amaral, mas mais radicalmente, julgo pois que a alienação da tecnocracia não é
apenas política. É desde logo técnica.