Incineradora, participação pública, e hipótese de uma "conferência de consenso"

No último meio século, os estudos sobre tudo o que intervém no desenvolvimento e implementação das tecnologias derrubaram a anterior crença ingénua de que estas seriam decididas por razões estritamente técnicas. De modo que a definição clássica de tecnologia – como mera aplicação de conhecimentos científicos, que por sua vez seriam neutros a fatores sociais, económicos… – foi substituída por definições mais complexas e abrangentes (v. este texto sobre o eng. Edgar Cardoso).
Se se opta por um regime democrático, daí decorre a exigência de participação pública nas decisões de implementação de certas tecnologias. Muito bem exemplificada pelo processo em curso nesta ilha sobre a construção de uma central de incineração de resíduos sólidos urbanos. Como Luís Anselmo bem apontou neste jornal em “Sinais da sociedade civil!” (15/03/2017).
Mas, assim, este processo também sofre o problema de eficiência que se reconhece em tais participações.

Democraticidade vs. eficiência

Com efeito, de um lado reconhecemos hoje o recurso dos técnicos a valores sociais e culturais, bem como a intervenções de interesses económicos, políticos, etc., no próprio seio de decisões técnicas. E ainda as consequências que certas tecnologias têm para populações inteiras.
Por exemplo, a escolha entre um equipamento que aumente um pouco a probabilidade de certas doenças, mas que seguramente crie alguns postos de trabalho, e outro equipamento com as propriedades inversas, por um lado não respeita apenas aos técnicos e decisores políticos da área tecnológica em causa, antes afeta toda a população que pode sofrer aquelas doenças e/ou usufruir desses postos de trabalho. Por outro lado, a hierarquia entre os valores, digamos, da saúde e da empregabilidade, bem como entre o da segurança e o da ambição para avaliar aquelas probabilidades distintas, ultrapassa o âmbito técnico.
Ou num exemplo mais interno à tecnologia: a escolha entre uma máquina mais fiável e mais cara, ou outra mais barata mas menos fiável, depende de uma valorização do longo prazo ou do curto prazo, a qual não só não é técnica, como nem sequer é propriamente económica (não é com base nestes conhecimentos que se decide em que casos se aplicará a célebre frase de J.M. Keynes “a longo prazo todos estaremos mortos”).
Além disso, os conhecimentos tecnológicos e/ou científicos tornaram-se a tal ponto complexos que muitas vezes são simplesmente ininteligíveis aos respetivos leigos. De modo que estes ficam incapazes de participar eficientemente na ponderação e decisão de certas alternativas tecnológicas.
Este problema, porém, deve ser imediatamente modulado como Wiebe Bijker apontou: não se trata do cidadão comum substituir o engenheiro no desenho de uma incineradora; mas de reconhecer que este último, como homem ou mulher, intervém no seu trabalho com mais do que apenas os conhecimentos e competências profissionais; e é nesses fatores extra, que o/a engenheiro/a partilha com os seus concidadãos, que estes têm o direito e o dever democrático de participar.
Ou seja, o cidadão padeiro, médico, técnico de turismo… ideal não é o que acumula licenciaturas em engenharia mecânica, gestão de empresas etc. Mas sim o que, além daqueles seus conhecimentos profissionais específicos, mantém competências de debate argumentativo que (além da aprendizagem extraescolar) foi chamado a desenvolver em português e outras disciplinas do ensino secundário. Mantém conhecimentos de lógica informal e de cálculo proposicional que os seus professores de filosofia lhe terão facultado. No caso de participação em decisões tecnocientíficas, mantém as noções elementares de ciências que foram introduzidas no 3º ciclo do ensino básico. E em geral, voltando à disciplina de filosofia no seu capítulo de ética bem como ao capítulo de desenvolvimento da personalidade para quem tiver estudado psicologia, cuida de montar uma hierarquia de valores pela qual se possa orientar na vida. Infelizmente, mesmo condições tão elementares quanto estas restam apenas como ideais… Mas o que importa é esclarecer que nunca é o cidadão leigo que tem de alcançar o engenheiro. É este que tem de reconhecer o que no seu próprio trabalho ultrapassa a engenharia em sentido estrito, e abrir-se às demais pessoas que, legitimamente, aí intervêm.
Em conformidade a essa modulação do problema da eficiência da participação pública em decisões tecnológicas, cabe determinar as formas que facultem um diálogo (eficaz!) sobre os fatores comuns ou partilhados.
Desde logo, Gene Rowe, Jason Chilvers, etc., têm apontado que o sucesso dessa participação depende do grau de representatividade da população em geral pelos intervenientes; destes serem independentes aos interesses económicos, etc., que se jogam diretamente nos processos em causa; de estarem envolvidos desde cedo na tomada de decisão; de terem real influência nesta última; de terem acesso à informação relevante; de assumirem tarefas claras; e de todo o processo ser transparente e confirmável a quem por ele se interessar.
Não tenho acompanhado passo a passo, confesso, o processo de discussão da referida incineradora. Ainda assim direi que me parece apenas algumas destas condições estarem a ser satisfeitas…
Quanto às formas de participação, tenho de começar por destacar as intervenções opinativas informadas e bem argumentadas, neste jornal, de João Quental Mota Vieira (“Incineradora em S. Miguel: A máquina de transformar prejuízo em hipotéticas vantagens”, 10/03/2017); Teófilo Braga (“2003, o ano em que foi decidido incinerar o futuro”, 21/02/2017); Francisco Botelho (“Incineração: um olhar do lado do sector eléctrico”, 21/02/2017); Luís Anselmo (“Parma e S. Miguel nos lixos”, 15/02/2017; e “O cerco europeu à incineração de resíduos”, 08/02/2017).
Em troca, um exemplo enviesado – confundindo informações e opiniões – foi a notícia do Açoriano Oriental (11/02/2017) da sessão de esclarecimento que a Musami promoveu na Lagoa, mas valorizando-se (numa opinião velada e não argumentada) uma das posições ali apresentadas sob o título geral “Especialista diz que não há razões para temer a incineração nos Açores”. Aliás a própria oradora aí referida, a fazer fé no texto desse jornal, terá feito essa confusão, cometendo ainda erros argumentativos facilmente desmontáveis por quem conhecer uns rudimentos de lógica.
Na minha rápida pesquisa não encontrei intervenções públicas, argumentativamente equiparáveis às daqueles meus colegas no Correio, mas favoráveis à construção da incineradora. Se não tiver sido apenas falha minha, se elas de facto não existem, isto será um péssimo sinal sobre um processo que, apesar disso, continua em curso*.

As "conferências de consenso"

Enfim, além dessas intervenções pessoais, e de reuniões como a promovida pela Musami, julgo que seria oportuno considerar aqui a experiência de origem dinamarquesa, mas difundida até à Nova Zelândia e ao Japão, das chamadas “conferências de consenso”.
São constituídas mediante painéis de entre uma a duas dezenas de pessoas, que satisfaçam as condições de independência, representatividade… acima apontadas (eu acrescentaria a reconhecida razoabilidade lógica e conhecimentos elementares de ciências). Esse painel tem a incumbência de tanto ouvir os peritos, quanto os representantes institucionais, quanto auscultar as comunidades envolvidas. Para elaborar um parecer e apresentá-lo quer publicamente, quer, num estatuto não vinculativo, aos decisores últimos na matéria. Os quais ficam obrigados a considerá-lo explicitamente na justificação pública da respetiva decisão.
Considerando e respeitando a diversidade de opiniões a montante do seu trabalho, e abrindo-se a uma eventual diversidade de juízos críticos a jusante  após a apresentação do relatório  o painel deve porém chegar a um consenso interno, pelo menos por maioria. Ou seja, o parecer deve recomendar uma das soluções possíveis.
Como todas as outras formas de participação pública, as conferências de consenso enfermam de dificuldades, e nem sempre têm sucesso. Mas têm sido talvez a melhor forma de responder à exigência de eficiência dessa participação. E, seguramente, não implementam os males maiores seja de um regresso a ideias entretanto desmontadas sobre tecnologia, seja de mascarar como “democratas” afinal manobras oligárquicas interesseiras, ou meros populismos.


in: Correio dos Açores, 23/03/2017


* Já depois de ter enviado este texto para o C.A. encontrei nesse jornal esta crónica de José Manuel N. Azevedo. Na qual o autor começa por se congratular por que "Finalmente alguém veio ao terreiro da comunicação social defender a incineradora de São Miguel. Está por isso de parabéns o Eng. Feliz Mil-Homens". Mas para em seguida rebater a argumentação deste último na base de Mil-Homens ter (alegadamente) cometido erros como, perante uma disjunção, defender um dos disjuntos por um mero elenco de razões que lhe sejam favoráveis, sem ponderar os respetivos custos, enfim em contraposição aos prós e contras do disjunto alternativo. A ser assim, mantém-se o "péssimo sinal". 

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