Na semana da Web Summit o tema impõe-se: que relações
se estabelecem entre a tecnologia e a sociedade? Reflitamos sobre a eventual
experiência de uma leitora que esteja a ler estas palavras no seu smartphone, intercalando com
uns saltos ao facebook, enquanto espera na sala de embarque de um aeroporto rumo àquela conferência em Lisboa.
A geração Y, a geração Z, e a geração silenciosa
A geração Y, a geração Z, e a geração silenciosa
Porventura terá escolhido os voos de ida e volta numa
aplicação desse aparelho que lhos tenha selecionado segundo preços, horários e
escalas. Assim como o local de alojamento em Lisboa, e porventura o carro
alugado. Tendo ela não só nessa altura marcado e pago tudo isso também com o
smartphone, como o terá utilizado ontem para fazer o check-in em casa enquanto jantava, trazendo o cartão de embarque digitalizado para ser
lido oticamente nos controlos do aeroporto.
Enfim, antes de responder à chamada para o embarque, essa
leitora poderá fazer um breve comentário a esta crónica naquela rede social. E
enquanto muda o smartphone para o modo de voo – voando instantaneamente para um
nebuloso passado em que cada pessoa apenas comunica com quem lhe está
fisicamente ao alcance – a sua sugestão de leitura ou de evitamento desta
ficará instantaneamente ao dispor de quaisquer outros participantes dessa rede,
desde a Patagónia à Sibéria (assim estes saibam a língua usada).
Parece uma enorme alteração social
em virtude dessas novas tecnologias! Ou talvez o seja apenas no número e na
imprevisibilidade, não na qualidade vivencial dos acontecimentos.
Afinal o avô da leitora já comentava os artigos que lia em
grandes folhas de papel de jornal. Apenas se restringindo ao diário que
assinava em casa, ou aos três amigos com quem se sentava habitualmente no café.
E também pode ter viajado de avião para ver casas, ruas e pessoas mais ou menos
diferentes das da sua terra. Apenas os preços devem tê-lo obrigado a viajar bem
menos do que a neta agora. Tendo que preparar cada deslocação em visitas a agências
de viagem, esperas na fila do check-in, e o cuidado para não perder bilhetes,
cartões de embarque, vouchers de hotel…
Ele faria tudo o que a participante da Web Summit
estará fazendo, apenas menos. De resto, uma diferença quantitativa bem pequena,
se a compararmos com a diferença entre o que a neta poderá fazer ao longo da
sua vida, e todas as informações, todas as casas e ruas e pessoas mais ou menos
diferentes que entretanto compõem o mundo inteiro. A neta agora como o avô antes:
duas insignificantes formiguinhas perante tamanho bulício.
“Tudo”? Talvez não exatamente. Vejamos de mais perto:
Temos o avô, digamos que nascido na década de 1940, seguindo
estas linhas num exemplar do Correio dos
Açores num café de Ponta Delgada, depois de ler as últimas notícias do
futebol e da política, e antes de procurar a farmácia de serviço logo à noite. A
neta, nascida na início da década de 1990, no parágrafo anterior o texto
cheirou-lhe a análise crítica, perdeu a paciência e passou o dedo sobre o visor
para abrir a página do facebook, onde se encontra agora a digitalizar, sem tempo
para maiúsculas nem pontuação, a sua denúncia destes anacronismos (ela não
conhece esta palavra, mas como já não se encontra connosco posso usá-la). Entretanto
na cadeira do lado temos um jovem, nascido pela passagem do século, embrenhado
no comando do seu avatar num combate “mortal” – mas em que a suspensão da morte
está à distância do botão “off”! – com um avatar controlado por alguém diz que na
Nova Zelândia. Interrompe apenas para uma selfie que apanhe a cota do lado que se dá ares de jovem
mas ainda se demora no facebook, e partilha-a no Snapchat para uma rápida
gargalhada do pessoal que esteja em rede. Quem não estiver, perdê-la-á, que a
imagem fica disponível poucos instantes e não pode ser descarregada.
Os sociólogos, e estudiosos da cultura, têm chamado “geração
silenciosa” (Grande Depressão – II Guerra Mundial) à do avô. “Geração Y” (os
que cresceram com a internet) à da neta a caminho da Web Summit - ainda no embalo do progresso das condições materiais e políticas de vida após a queda do Muro de Berlim, constituição da União Europeia com moeda própria, a NATO a resolver a guerra da Bósnia, banalização dos PC's... E “geração Z”, ou “milénio”, aos nascidos no fim da décadas de 1990 ou
na seguinte – aquela para quem a web é simplesmente a natureza, e a atualidade se encontra na estagnação da economia ocidental, na chegada da China, no arame farpado da
Hungria e a promessa do muro de Trump, passando pelo brexit.
Umas relações nos dois sentidos
Umas relações nos dois sentidos
Para o nosso jovem do aeroporto, o Snapchat é uma
ferramenta que lhe permite intervir socialmente no seio de uma temporalidade
atomizada em instantes que se esgotam em si mesmos, sem futuro que a oriente,
nem passado que a condicione. Uma ferramenta que não se gasta em funções de
alindamento – fotoshops e quejandos – que não será por se doirar na fotografia
a areia da praia que haverá emprego que permita lá passar férias. Que não há linda e
asséptica cronologia de facebook que se não dilua em qualquer reviravolta da
vida.
Por isso troça da viajante ao lado. Por isso adota
esta outra rede social. Mas também os produtores desta assim a desenham em
correspondência a este novo passo da história mundial.
Tal como os produtores do facebook a desenharam para quem se disponha a construir cronologias de imagens de situações e corpos invejáveis. Tal como os produtores de mesas e cadeiras para cafés, os construtores destes, etc., os preparavam para demoradas tertúlias entre habitués.
Tal como os produtores do facebook a desenharam para quem se disponha a construir cronologias de imagens de situações e corpos invejáveis. Tal como os produtores de mesas e cadeiras para cafés, os construtores destes, etc., os preparavam para demoradas tertúlias entre habitués.
A evolução desta história social é composta por muitos outros fatores além do
tecnológico. Embora seja incrementada pela tecnologia usada. Um uso que – agora no sentido da sociedade
e da história para a tecnologia – depende de como, e para quê, a maioria das
pessoas se apropria das tecnologias disponíveis. Condicionando assim, no seu
estatuto económico de “procura”, a orientação do desenvolvimento tecnológico
pelos respetivos produtores. (Veja-se a análise do desenvolvimento da bicicleta por W. Bijker)
Como dirão os lógicos e matemáticos, não há uma função
de determinação da tecnologia sobre a sociedade. Antes uma relação da primeira
para a segunda implica alguma relação da sociedade para a tecnologia, e
vice-versa.
Creio, assim, que as expetativas da nossa viajante sobre
a Web Summit serão tão mais satisfeitas, e frutuosas a longo prazo, quanto mais ela relativizar o
desenvolvimento e uso da tecnologia àquele complexo de relações simétricas. Evitando entusiasmos tecnófilos que afinal desmentem a realidade de qualquer tecnologia.