No dia 5 deste mês passam 40 anos sobre a inauguração
de uma das mais relevantes obras de arte de Edgar Cardoso: a ponte Nobre de
Carvalho, que liga Macau peninsular e a ilha de Taipa. Ainda que, para o meu
gosto, não chegue ao nível dessa escultura sobre o Douro que é a ponte de S.
João, o uso aqui de “obra de arte” ultrapassa o sentido estrito que julgo dar-se-lhe
em engenharia civil (uma obra única). Exemplificando quão a técnica é outra
coisa que não mera ciência aplicada.
"Obras de arte"
Assim, a apresentação dessa ponte, no Heritage of Portuguese Influence Portal, começa e termina não
pelas teorias que expliquem a sua estabilidade, ou por números relativos ao
tamanho do vão, à quantidade de aço utilizado… mas, neste caso, pela dimensão
simbólica (por onde também começa este belíssimo vídeo da Ordem dos Engenheiros, do qual infelizmente não encontro a versão completa).
No seio da polissemia que distingue as obras de arte dos meros utensílios, a ponte Nobre de Carvalho é então ali comparada à figura de um dragão, com o dorso arqueado a meio e o volume da cabeça no Casino Lisboa, fonte nesse território do poder que a cultura chinesa representa por aquela entidade mítica.
No seio da polissemia que distingue as obras de arte dos meros utensílios, a ponte Nobre de Carvalho é então ali comparada à figura de um dragão, com o dorso arqueado a meio e o volume da cabeça no Casino Lisboa, fonte nesse território do poder que a cultura chinesa representa por aquela entidade mítica.
Seja esta ou outra a sugestão estética que cada
observador reconheça nela, seja qual for a intencionalidade com que cada utente a
experimente quando a atravessa, o facto é que, a jusante do processo
construtivo, os objetos tecnológicos são experimentados de um modo que
ultrapassa em muito o conhecimento científico implicado por essas produções.
Mas também a montante destas últimas a técnica não se reduz a mera aplicação da
ciência. (Aliás, se não logo desde a luneta de Galileu, pelo menos a Big Science desenvolvida após a II Guerra Mundial frequentemente me parece bem mais
técnica aplicada do que esta uma aplicação da anterior).
Dessa autonomia original nos dão conta precisamente os
testemunhos no video sobre Edgar Cardoso. Nomeadamente, sobre o modo
como o célebre engenheiro obteve resultados que os cálculos matemáticos, com
referência a leis naturais, dificilmente lhe facultavam, testando em
laboratório o comportamento de modelos reduzidos das estruturas que lhe eram
encomendadas.
As ciências como técnicas e tecnologias aplicadas
O conhecimento técnico, próprio a
esse “cálculo experimental”, como que curto-circuita o modelo nomológico-dedutivo
com que Carl G. Hempel distinguiu a explicação científica (da Natureza). A
saber, esta apresentar-se-ia como a) dedutivamente válida; b) contendo pelo menos uma
lei geral (gr. nomos); c) sendo empiricamente testável; e d) as frases que a
compõem teriam de ser verdadeiras. Naturalmente também se poderá recorrer a leis
físico-químicas para explicar, por exemplo, por que estavam enganados todos
quantos, no dia do fecho do arco da ponte da Arrábida, acorreram às margens do
Douro para o ver cair! Mas – voltando aos testemunhos referidos – um
conhecimento de como essa estrutura se torna estável pode ser obtido, com
economia de esforços se não mesmo de forma mais completa ou mais integrada, pela
subordinação, ou até pela substituição da condição científica (b) por
extrapolações diretas seja de outras experiências técnicas, seja de testes em
pequenos modelos físicos, seja de estruturas naturais observadas em férias numa
quinta (!), sem a mediação da abstração nomológica. O que, na condição (a), substitui
“dedução” por “indução”.
Ainda mais a montante da produção
técnica, esta também se autonomiza da ciência “problematologicamente”: o tipo
de perguntas das quais o conhecimento científico, de um lado, e o conhecimento
propriamente técnico, do outro, se constituem como respostas, não é o mesmo. Os
problemas científicos são da ordem do esclarecimento, ou da explicação, cujas
soluções são eventualmente usadas pela ciência aplicada. Já as propostas
técnicas respondem a problemas que se apresentam imediatamente nas diversas
dimensões da vivência humana, visando (as primeiras) resolvê-los (aos
segundos). Para o que qualquer explicação do que esteja em causa não passa de
um possível recurso – importa é que o problema prático fique resolvido tão
satisfatoriamente quanto possível. Mais uma vez, o vídeo da Ordem dos
Engenheiros dá conta disto ao apontar a evolução histórica da vivência no Porto
e em Gaia a que a decisão de construir a ponte da Arrábida veio responder.
Assinalando esta efeméride de um outro projeto de
Edgar Cardoso – porventura mundialmente mais relevante dada a atual relevância
da China – questionamos assim o chamado “modelo linear” que faz a técnica
decorrer da ciência, e esta projetar-se naquela – na dimensão cognitiva: i) o
progresso da teoria pura, em regra seria ii) aproveitado na investigação
aplicada, e daqui decorreria iii) inovação tecnológica[i].
Problemas, porém
Todavia, pergunto-me (sem saber as
respostas) se em muitas situações, talvez a maioria ainda que as menos
relevantes, não será preferível manter uma ciência aplicada, em detrimento de
uma técnica cujas competências talvez sejam demasiado difíceis? Afinal, muitas
vezes poderá ser mais económico, ou mais seguro, responder-se a um dado
problema prático pela aplicação de um modelo geral desenvolvido previamente
numa base teórica, em vez de se encetar uma extrapolação original na base da
história da técnica, do comportamento de um modelo reduzido, etc.
Nesse caso, porém, como é que se reconhecem as
situações que apelam à técnica, distinguindo-as das que apelam à ciência
aplicada? Mediante algum algoritmo geral, científico, ou mediante uma intuição
propriamente técnica?…
E quanto às formações para respostas a problemas
práticos (engenharias, medicina…): estarão estas a facultar conhecimentos e
competências técnicas, de um lado, de ciência aplicada, do outro, e de seleção
de umas ou outras conforme o caso?
Edgar Cardoso disse que “em todos os rios há um sítio
que foi feito para se pôr uma ponte. É preciso é encontrá-lo”. Uma vez que se
distingam as margens entre a ciência e a técnica, julgo que o mesmo vale para
elas.
[i] Na
dimensão económica, esse modelo alinha i) investimento em investigações
fundamental e aplicada, ii) produção tecnológica, iii) aumento da
produtividade, iv) crescimento económico. E, na sua formulação mais heroica, do
momento (iv) decorreria o (v) desenvolvimento humano. Noutro sítio comparei esta fé cientista à atitude
do primo do Harry Potter face às prendas de natal.
in: Ciência Hoje, 02/10/2014