O manifesto do movimento “Direito a morrer com dignidade”, a favor da despenalização da eutanásia, espoletou um debate público
no qual julgo que frequentemente se têm confundido duas questões. Uma pessoal e
íntima, a outra político-jurídica.
2 questões logicamente irredutíveis
2 questões logicamente irredutíveis
Na primeira questão discute-se a bondade, ou falta
dela, da eutanásia, mediante perguntas como: “O que é que eu pretendo que me
façam, se vier a cair numa condição irreversível de sofrimento intolerável e permanente
(de origem física ou psicológica), se perder a autonomia e a consciência,
etc.?”. “O que é que eu aceito que se faça ao meu cônjuge, filho… se ele/a cair
em tal situação, e peça (ainda consciente, e continuadamente) a eutanásia?”.
Talvez até: “O que é que aconselho os outros a fazer?”.
Em troca, a questão política é a da determinação de
quem responderá a tais perguntas: o Estado, ou cada pessoa? Mais precisamente,
deve o Estado recusar tal possibilidade aos indivíduos, ou deve abster-se de
interferir na intimidade destes últimos? (A hipótese do Estado intervir, mas
para obrigar à eutanásia de quem os funcionários públicos entenderem, tem sido
aceite apenas por nazis e seus semelhantes – não está em cima da mesa).
As duas questões são logicamente independentes, pois uma certa
resposta numa delas não implica qualquer das respostas possíveis à outra – por
exemplo, se alguém por um lado pretender nunca recorrer à eutanásia, pelo outro
lado tanto pode estender essa recusa a todos os outros, como pode deixar essa
decisão a cada um; e se pessoalmente considerar a eutanásia como uma
possibilidade positiva, pode querer abri-la legalmente a todos, ou julgar que
as instituições, ou a maioria das pessoas a usaria defeituosamente, e entender
melhor manter a penalização desse ato.
No âmbito da ciência, tecnologia e sociedade, em que me
tenho colocado nestas intervenções mais ou menos regulares nas páginas do CA, creio não se encontrarem recursos
suficientes para se responder justificadamente à questão pessoal. Em troca, a questão
política é imperativa, dada a relevância de qualquer tecnologia de morte
humana, e a correspondente necessidade do respetivo controlo social.
Por uma decisão democrática (no sentido liberal deste termo, não no sentido popular... ou totalitário!)
Por uma decisão democrática (no sentido liberal deste termo, não no sentido popular... ou totalitário!)
Neste âmbito, começo pois por reconhecer ao movimento
atrás referido, e às inúmeras pessoas que desde então têm intervindo no debate
público em curso, o mérito de implementarem esse necessário controlo. Seja não
ignorando uma possibilidade efetivamente aberta por uma tecnologia existente –
ignorância que normalmente permite toda a sorte de abusos e perversões. Seja não
remetendo a decisão para qualquer minoria, que nunca constituiria mais do que
uma pseudoelite.
De um lado, porque quer a mera detenção dos poderes legislativo
e executivo – no caso da minoria decisora ser política – quer o conhecimento e
a capacidade para se usar a tecnologia da eutanásia – no caso de se remeter a
decisão para os técnicos de saúde – não implicam qualquer conhecimento antropológico
e ético. Mas apenas com base neste se pode justificar, razoavelmente, a decisão
aqui em causa.
Do outro lado, porque no âmbito deste último
conhecimento também não é possível isolar uma elite em cujo discernimento o
resto da população pudesse simplesmente descansar.
Ilustração disto foi a intervenção de um participante
num recente debate televisivo, que invocou, aparentemente como “premissas” da
sua “conclusão” sobre a questão pessoal da eutanásia, o facto de ser professor
de ética, de estar em sintonia com catedráticos europeus… As aspas atrás
devem-se ao facto de, não trazendo a terreiro qualquer critério de decisão em
teoria ética, o discurso desse interveniente se constituir apenas como uma
falácia de “apelo à autoridade”.
A qual de modo nenhum mascara a ausência de um
critério ético equivalente ao da observação em física, ao da contradição na
demonstração de teoremas matemáticos, etc. Enquanto pois as elites em
matemática, física… são constituídas pelos autores das teses que passam o crivo
de tais critérios, os professores de ética são apenas pessoas a quem foi
reconhecido terem trabalhado nesta área. Mas os seus resultados não são
credíveis como os anteriores.
Para a decisão política, e controlo social, da
tecnologia da eutanásia, resta-nos assim, nas palavras de Winston Churchill, o
pior regime possível à exceção de todos os outros que já foram experimentados:
a democracia. A qual pode ser direta / participativa, ou indireta /
representativa.
Não vislumbro porém legitimidade política nos atuais
deputados para legislarem numa matéria que, muito acima das condições de vida
versadas pelo Orçamento do Estado, etc., trata do sentido que a nossa
comunidade reconhece à vida humana, e do sentido que atribui à lei como tal. Pois
nem se comprometeram com os eleitores a favor de qualquer das posições
possíveis. Nem qualquer ponto do contrato que firmaram com o eleitorado implica
alguma orientação na questão da despenalização da eutanásia. Pelo que a decisão
de uma atual maioria parlamentar nos reconduziria ao privilégio de uma minoria
– no caso, uma pseudoelite política.
Por exclusão de partes, o referendo constitui o pior
instrumento, à exceção de todos os outros já experimentados, para um nosso imediato
controlo social da tecnologia da eutanásia. Outra possibilidade será adiar a
decisão para uma próxima legislatura, mas então comprometendo-se antes cada
partido com uma opção na matéria.
Pela institucionalização da possibilidade da eutanásia
Pela institucionalização da possibilidade da eutanásia
Posto isto, se esse referendo se vier a realizar,
salvo melhor argumentação contrária que entretanto venha a encontrar, votarei a
favor da despenalização da eutanásia.
Pois a argumentação que conduz à célebre frase de
Churchill a favor da democracia liberal rejeita que questões como a do sentido
da vida sejam decididas, e impostas, politicamente.
Ou seja, é certo que a lei também tem um sentido de
prescrição moral, de aconselhamento ou indução valorativa e comportamental – a
recusa da eutanásia terá assim o sentido de um apelo ao aproveitamento da vida,
ou a uma simples aceitação do facto desta. Mas, liberalmente, quaisquer
sugestões são subordinadas ao respeito último do Estado perante decisões
íntimas dos indivíduos (na condição destas não interferirem com vidas alheias).
Portanto têm que ser retiradas se, uma vez convertidas em lei, violarem decisões
íntimas.
Acrescento
duas notas a outras tantas objeções, uma empírica a outra lógica, que se
colocam contra essa posição que perfilho.
A primeira objeção é que a despenalização da
eutanásia faculta mortes por negligência, se não mesmo assassinatos encobertos.
Admito, pois não há sistemas perfeitos. Volto porém às
palavras do grande estadista inglês, para apontar que aqui procuramos apenas o
menos mau enquadramento legal. Da mesma forma que não desistimos de todo o
sistema prisional, e do Código Penal, apenas porque por vezes se aprisionam ou
penalizam inocentes – e sem qualquer menorização de cada um destes dramas.
Antes insistimos na transparência dos processos, no cruzamento de
fiscalizações, na liberdade de expressão, na subordinação do prestígio das
instituições à dignidade de cada pessoa (não escamoteando erros
institucionais)… A despenalização da eutanásia exigirá um equivalente
dispositivo de vigilância.
Por outro lado, logicamente objeta-se à eutanásia que
a liberdade implica a vida. Logo não fará sentido uma liberdade de se atentar
contra esta última.
Julgo que esta objeção enferma da falácia da
ambiguidade da estrutura da frase (anfibologia). Pois a vida logicamente
implicada pela liberdade do suicida é a do corpo deste último ao pedir a
injeção fatal, ao apontar à cabeça a arma e premir o gatilho, etc. Essa
implicação é óbvia. Mas a liberdade atual não implica qualquer posição,
positiva ou negativa, em relação a uma vida ulterior. Que é a que está em causa
no ato da eutanásia. (Lembro aos candidatos a contra-argumentações lógicas que a lógica temporal, que é a que aqui se aplica, não é verofuncional como o cálculo proposicional a que normalmente recorrem...).
Uma vez que porventura se estabeleça esta resposta
liberal à questão política da eutanásia, caberá então a cada um de nós, pessoal
e intimamente, enfrentar as perguntas bem mais difíceis que mencionei no segundo
parágrafo.
in: Correio dos Açores, 17/03/2016
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