Num dos mais célebres textos da nossa história das
ideias, apresentado no Casino Lisbonense a 27 de maio de 1871, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares
nos Últimos Três Séculos, Antero de Quental reconheceu ter-se tornado
crónica uma decadência socioeconómica de Portugal em relação aos seus pares
europeus. Tendo argumentado que esse fenómeno radicaria na cultura moderna
portuguesa. E que, nesta, seriam três as “causas” da nossa decadência, Das quais
pelo menos as duas primeiras partilham uma desvalorização da racionalidade
crítica – e assim do espírito das ciências modernas.
Em vésperas do dia de Portugal, aqui regresso ao
diálogo com esse meu ilustre conterrâneo, para acrescentar um comentário em prol
do reforço da cultura própria a essas ciências no seio da cultura com que nos
definimos coletivamente.
Regresso assim também a um dos livros que, em troca,
restaram dos mais “ignorados” da nossa história editorial recente (como
escreveu, creio que na única menção que por um momento terá retirado esse
ensaio da indiferença, um reputado cientista a quem fico grato pelo reconforto
de um amarfanhado ego de autor). Embora o meu acompanhamento daquele
intelectual oitocentista tenha sido mais paralelo do que coincidente – daí o
título: Condições do Atraso do PovoPortuguês nos Últimos Dois Séculos – pelo menos sobre a referida
racionalidade fizemos uma tangente.
Pois uma das duas condições que destaquei no nosso
atraso – em alternativa às causas anterianas de uma nossa decadência – é uma
insuficiente vocação para o que se possa chamar “realidade”. A qual julguei ser
implicada por (entre outras condições) uma desvalorização do conhecimento
teórico. Isto é, das crenças gerais que, justificadamente, sejam consideradas
verdadeiras, podendo-se assim reportar a uma realidade.
Das ciências para as humanidades
Das ciências para as humanidades
É certo, entretanto, que a multiplicidade de sentidos
da palavra “real”, dos seus modos de expressão, de “verdade”… abre a outras
abordagens além das ciências naturais e das ciências sociais.
É o caso das humanidades. Que se hoje tendem a ser
desvalorizadas por comparação com as ciências, penso, em grande medida é porque
os seus agentes (das humanidades) tendem a reduzir-se a entertainers, a membros de clubes sociais de elogios internos
mútuos… (Mas estas são contas de outro rosário).
Todavia, pelo menos classicamente,
as humanidades levavam a cabo uma representação das vivências humanas, fosse
apresentando casos significativos, fosse interpretando o sentido dos textos que
os apresentam. E esse é um solo que se não pode ignorar. Seja para as hipóteses
das ciências sociais, seja afinal para uma representação integral das vidas das
mulheres e homens concretos, eventualmente cientistas, mas que nem por isso
deixam de ter de ir buscar o filho à natação, pagar a conta da luz, etc.
Nesse âmbito “verdade” significa uma
convicção íntima do sujeito do discurso, ou mesmo uma compatibilidade semântica
entre as componentes deste último – ex. entre a filiação comum de Carlos da
Maia e Maria Eduarda e a condição de se não conhecerem… mas também entre as
componentes da tese da guarda avançada do império mongol ter sido erguida no alto do pico da ilha do Pico!
Como este último exemplo sugere, porém, a redução à convicção
e à compatibilidade semântica abre a porta ao wishful thinking – um exemplo queirosiano serão todos os Dâmasos
Salcede que julgam tornar-se Portugal um país “chique a valer” pela simples
arte de eles assim o proclamarem.
Das humanidades para as ciências
Das humanidades para as ciências
Para fechar esta porta impõe-se subordinar parte do
discurso a balizas que lhe sejam independentes. Quer apenas um corpo de regras
lógicas (ex. a dedução natural) e um conjunto limitado de axiomas – numa
conceção da verdade como coerência entre as noções usadas e implicadas na expressão
em causa. Quer mesmo referências externas às palavras e proposições – sendo
estas “verdadeiras” se corresponderem àquelas.
Precisamente para melhor se verificar esta
correspondência, as ciências modernas implementam toda a sorte de experiências
controladas, em especial para a explicação de fenómenos naturais, bem como
redes concetuais, modelos matemáticos e esquemas figurativos, também sobre
fenómenos psicológicos e sociais.
Assim se recusam as “coincidências” e “paralelos” que
tecem wishfull thoughts, desde o dos
guerreiros de Genghis Khan nos Açores ao de quaisquer sucessos socioeconómicos
realizados por pura convenção linguajeira.
Quem dedicar o seu feriado de 10 de
junho a uma leitura crítica seja de Causas
da Decadência dos Povos Peninsulares, seja até (se o distribuidor não tiver
já precisado de espaço no armazém, e restar algum exemplar) de Condições do Atraso do Povo Português, aí
encontrará então argumentos, na base de informações empíricas, de que enquanto
a cultura portuguesa enjeitar a cultura das ciências não alicerceará um país com
condições europeias de vida para a generalidade dos seus habitantes.
in: Ciência Hoje, 10/06/2015
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