Ao
longo do ano há pouco terminado, o Edge.org
colocou à discussão a questão What scientific idea is ready for retirement? Jerry Coyne apontou como
resposta a ideia de livre-arbítrio:
Não, não poderíamos tê-la pedido
Não, não poderíamos tê-la pedido
“When pressed, nearly all scientists and most
philosophers admit this. Determinism and materialism, they agree, win the day.
But they're remarkably quiet about it. Instead of spreading the important
scientific message that our behaviors are the deterministic results of a
physical process, they'd rather invent new "compatibilist" versions
of free will: versions that comport with determinism. "Well, when we order
strawberry ice cream we really couldn't have ordered vanilla", they say, "but we still have free
will in another sense. And it's the only sense that's
important."”
Duvido que o sentido
compatibilista de “livre-arbítrio” seja o único que é importante… ou sequer que
importe significativamente. Depois, no meu escasso conhecimento das razões de
“quase todos os cientistas e a maioria dos filósofos”, inclino-me para a
conclusão oposta à desse professor de ecologia e evolução em Chicago (a
ignorância é atrevida!).
Começo por onde estamos de acordo. De um lado, o
compatibilismo reduz a autodeterminação da vontade de comer
gelado de morango – um critério normal do livre-arbítrio – a uma nossa assunção
da nossa disposição para o pedir, pela razão de que este sabor é o que se afigura melhor satisfazer o nosso paladar. Mas sem que, consciente e voluntariamente, sejamos a causa quer daquela disposição, quer das razões, quer do comportamento (enunciação) do pedido.
Duvido porém que seja concebível que o valor associado
ao morango (quanto ao sabor, preço, nutrição…), e o valor associado à baunilha
– decidindo nós apenas por reconhecermos que o primeiro valor será maior do que
o segundo – possam surgir associados às ideias de cada um dos sabores sem
qualquer intervenção livre do sujeito… Fica a questão aberta.
De outro lado, a possibilidade efetiva de tanto ter
escolhido morango quanto baunilha – mais um critério normal do livre-arbítrio –
eventualmente será reduzida pelas teorias compatibilistas à possibilidade de
que a nossa vontade tivesse assumido a opção pelo segundo sabor, assim a isso fosse
ela determinada.
Mas, deste modo, troca-se a efetiva possibilidade de o
termos pedido em vez de morango, pela mera possibilidade de que a nossa vontade
tivesse sido determinada a favor da baunilha. Me parece que este ajustezinho compatibilista terá um efeito sobre a tese do livre-arbítrio equivalente ao da restauração que aquela senhora espanhola fez
numa pintura da igreja da sua aldeia.
De outro lado ainda, segundo os compatibilistas diríamos ao empregado “…de morango, por favor”, quer assumíssemos as razões deste pedido, quer nos mantivéssemos alienados delas. Dispensando
assim o critério da consequencialidade das escolhas, também normalmente atribuído ao livre-arbítrio.
Resta saber se esta dispensa não remeterá a questão do
livre-arbítrio para a mesma classe de importância
da velha questão do sexo dos anjos.
Se essas pistas argumentativas levarem a bom porto[1],
restar-nos-á então um de dois incompatibilismos: ou o livre-arbítrio é
verdadeiro e o determinismo materialista é falso, ou vice-versa; além da
possibilidade de serem ambos falsos, e vivermos ao sabor dos ventos. É nesta
encruzilhada que me inclino para a alternativa contrária à do autor acima
citado.
Antes de mais, a frequência de compatibilidade entre
intenções, atos e consequências, julgo tornar pouco provável a tese aleatória.
Ou talvez tenhamos podido...
Ou talvez tenhamos podido...
Posto isso, a observação natural apresenta-nos uma
enorme diversidade de alternativas, como a culinária entre sabores de gelados.
Mais as linguísticas e comunicacionais, de comportamentos sexuais, obras
artísticas, teóricas, técnicas, políticas… Geradas por um homo sapiens que a
genética atual concebe como bastante homogéneo.
Ora me parece teoricamente convidativo articular esses
dois dados numa liberdade radical (sem prejuízo de influências ulteriores) e
criatividade dos indivíduos desta espécie. Até porque também em ambientes
naturais semelhantes se encontram culturas distintas; assim como a mesma em
ambientes naturais distintos – não serão pois estes a determinar aquelas.
É certo que as interpretações dos resultados de experiências laboratoriais de processos neuronais, uma vez que estes pareçam ser correlativos aos processos de escolha observada, podem contradizer dados da observação natural das mulheres e homens nos seus comportamentos naturais.
É certo que as interpretações dos resultados de experiências laboratoriais de processos neuronais, uma vez que estes pareçam ser correlativos aos processos de escolha observada, podem contradizer dados da observação natural das mulheres e homens nos seus comportamentos naturais.
Mas, sempre que isso aconteça, direi que se arriscam a
ser válidas tantas vezes quanto os resultados daqueles esforçados alunos de matemática que não falham um cálculo, mas que por desprezaram o português não interpretam
devidamente o enunciado dos problemas… É com isto em mente que acompanho como
posso investigações laboratoriais como esta – que põe em causa
precisamente uma das interpretações invocadas por Coyne na sua argumentação
contra o livre-arbítrio.
Para quem, contra tudo isso,
insistir ainda que “o determinismo e o materialismo ganham o dia”, restará
enfim a tarefa de rebater W. Daniel Hillis, que na mesma página do Edge.org, em “Cause and Effect”, aponta
que “the cause-and-effect paradigm (…) falls apart when we try to use causation
to explain complex dynamical systems like the biochemical pathways of a living
organism, the transactions of an economy, or the operation of the human mind”.
Ou seja, retirando-o à base da anterior recusa do
livre-arbítrio, a ideia científica do determinismo absoluto é que poderá dever
ter sido passada à reforma em 2014.
[1] Para
uma excelente análise resumida da problemática do compatibilismo entre
determinismo materialista e livre-arbítrio (pp. 87-94), mais o desenvolvimento
do argumento compatibilista (pp. 94-109) oposto à sugestão que aqui deixo, v.
André Barata, “Livre-arbítrio e Determinismo”, in: Sentidos de Liberdade, pp. 85-109 (com o mérito deste filósofo
português não dizer que o seu é o único sentido que importa!)
in: Ciência Hoje, 01/01/2015
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